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Brasil evangélico e seus significados

A seguir disponibilizamos nossa recente entrevista ao jornal Nosso Tempo, do Rio de Janeiro (RJ), sobre o crescimento evangélico nacional, a laicidade do Estado e temas correlatos. 

Nosso Tempo. A que se deve o crescimento dos evangélicos no Brasil, nas últimas décadas? Em termos práticos, o que significa esse crescimento para a Igreja e a sociedade brasileira?

Johnny Bernardo. Há uma série de fatores relacionados ao crescimento dos evangélicos brasileiros, como o investimento, a partir dos anos 50, em meios de comunicação de massa, cruzadas evangelísticas conduzidas por pastores norte-americanos, chegada – também nos anos 50 – do pentecostalismo de costumes liberais, representado por igrejas como O Evangelho Quadrangular e a Igreja Cristã de Nova Vida, além de campanhas de cura e libertação conduzidas por igrejas autônomas, como a Deus é Amor e a Casa da Benção.

Com o surgimento, nos anos 70, da Igreja Universal do Reino de Deus, tem início uma nova fase no movimento evangélico brasileiro, em que elementos do pentecostalismo clássico, autônomo e liberal são adaptados a um novo contexto, levando ao desenvolvimento do que seria conhecido como neopentecostalismo ou, como preferem alguns estudiosos da religião, baixo-pentecostalismo. Da IURD surgiria, segundo o pesquisador francês Marion Aubree, as “igrejas clones da Universal”, com características e estratégias diferenciadas.

Finalmente, há uma importância histórica no sentido de que os evangélicos passam a assumir uma nova postura na sociedade, com maior representação em meios de comunicação outrora avessos ao protestantismo. Por outro lado, nota-se uma discrepância e diferenciação contínua no movimento evangélico brasileiro, que o torna um movimento independente, competitivo, superficial. O Censo 2010 do IBGE aponta para 42,5 milhões o número de evangélicos brasileiros, mas não leva em conta o fato de que não há, pelo menos nas igrejas neopentecostais, uma consciência definida do que é ser Igreja, sendo comum frequentadores orbitarem entorno de terreiros de umbanda e templos da Universal, por exemplo. É um problema não identificado pelo IBGE.

A sociedade, de modo geral, é afetada pelo crescimento das igrejas evangélicas brasileiras, pelo o fato de que as opções de culto ou religiosidade são consideravelmente maiores do que, por exemplo, na primeira metade do século XX, quando o catolicismo romano reinava absoluto, tendo apenas algumas pequenas concorrências locais, de igrejas protestantes históricas (presbiteriana, batista,  por exemplo), religiões de possessão (umbanda, candomblé) etc. A própria herança religiosa é outra realidade que começa a perder sentido no Brasil. Os novos brasileiros veem ao mundo em um período em que a diversidade religiosa oferece multiplicas opções de escolha.

A maior exposição evangélica (na mídia, por exemplo, com a participação de pastores e cantores gospel em programas “seculares” ou com o aumento de programações das igrejas nas grades de TV)  tem facilitado a propagação do Evangelho ou provocado desgaste? O que pode ser feito para que a presença evangélica seja, de fato, relevante na sociedade? Temos o exemplo de alguma comunidade, país, em que a Igreja trabalhou bem, nesse sentido?

Os meios de comunicação são instrumentos de propaganda, de marketing, que facilitam o intercâmbio entre vendedores e consumidores. Obviamente que religiões, ONGs e partidos políticos recorrem aos recursos audiovisuais com o intuito de tornarem seus projetos e produtos “vendáveis” ao grande público. É uma maneira prática, diríamos, de penetração em locais diversos. Sendo um recurso, cada grupo ou pessoa jurídica o utiliza com um objetivo especifico, embora nem sempre idôneo ou eticamente correto.

Ao mesmo tempo em que contribui com a divulgação da Palavra, as programações evangélicas aos poucos perdem seu sentido original. Os recursos audiovisuais têm sido usados como mecanismos de comercialização da fé, sem compromisso pastoral. Tornou, digamos, um método adaptável por qualquer organização religiosa, como a Igreja Templária de Cristo na Terra e a Catedral Mundial dos Orixás, que aos poucos aderem ao formato das programações neopentecostais, com frases chamativas e de impacto.

Nas últimas décadas a igreja evangélica brasileira tem se caracterizado como uma Igreja de templos, de liturgias, de reuniões infindáveis. Em outras palavras, ao invés de se fazer presente na sociedade, a Igreja tem se retraído cada vez mais. Tal nos leva a refletir sobre que tipo de crescimento evangélico a mídia se refere? Há algo não perceptível dentro e fora das instituições evangélicas, que é a multiplicação de pequenos salões em áreas relativamente próximas uma das outras. São locais que, geralmente, não possuem mais do que vinte membros, que se revezam na condução dos cultos, de forma rotineira.

A Igreja somente será relevante na medida em que aprender a dialogar com os vários segmentos da sociedade, compartilhar seus problemas e frustrações. É preciso, portanto, ampliar a presença nos bairros, nas comunidades, no dia-a-dia das pessoas. Uma igreja reclusa, isolada, não produzirá resultados eficientes, mas sim desgaste dos membros. Nos EUA, têm se destacado o surgimento de cultos alternativos, como em academias, escritórios, restaurantes, empresas etc. O ideal é não substituir o templo por um local alternativo, mas tornar a fé mais participativa, mais contextualizada à realidade social.

Estatísticas apontam uma tendência de crescimento vertiginoso dos evangélicos no Brasil para os próximos anos. Na sua visão, surgirá uma igreja com outro perfil ou é a atual igreja que crescerá?

Há uma tendência quase que universal de adaptação religiosa, de contextualização de crenças e práticas. Comparada com os primeiros anos da segunda metade do século XX, a igreja evangélica contemporânea possui inúmeras diferenças, que passam pelo sistema litúrgico e de usos e costumes. Portanto, há de se desenvolver, nos próximos anos, uma significativa diferenciação entre protestantes históricos e pentecostais. A tendência é de que o protestantismo histórico  se torne cada vez mais liberal, aberto a novas tendências e discussões da sociedade; diferente do pentecostalismo, que será caracterizado como um movimento conservador, tradicionalista. É uma inversão, dado o fato de que o protestantismo histórico, nos primeiros 25 anos do século XX, foi conhecido como um movimento extremamente conservador.

O desenvolvimento do liberalismo teológico fez com que algumas denominações protestantes dos EUA e da Europa começassem a repensar determinados pontos polêmicos em que se via obrigada a discutir, como a consagração de homossexuais ao ministério, pesquisas de células-tronco embrionárias, aborto etc. O pentecostalismo, por outro lado, surgiu nos anos 10 do século XX como um movimento agregador, menos fundamentalista, porém incisivo em questões de família. Nos últimos meses vem assumindo um novo aspecto, menos fanático em questões de usos e costumes, porém conservador em questões ligadas ao matrimônio heterossexual. Obviamente que a tendência geral é de adaptação à sociedade, mesmo que mantidos alguns aspectos conservadores. Os pentecostais vêm passando por uma série de adaptações ao longo das últimas décadas, e deverão evoluir para novas mudanças.

A Igreja Pentecostal Deus é Amor é um exemplo de que, com uma possível ausência de seu líder máximo e fundador, David Miranda, deverá caminhar para novas mudanças, como abertura aos meios de comunicação, diminuição da rigidez doutrinária. Há algumas mudanças em processo, como a veiculação da imagem do fundador nas fachadas das filiais, e em meios de comunicação. Recentemente a Internet foi liberada aos membros, e já há uma preocupação com a formação acadêmica (teológica e secular), por parte de alguns líderes e membros da IPDA. É uma tendência comum às igrejas pentecostais, como a Assembleia de Deus que, com a chegada da televisão ao Brasil, a proibiu aos membros, mas que aos poucos liberou o acesso ao recurso. Os costumes também passam por um processo de liberalização, embora com certa resistência localizada.

A tendência é que a igreja evangélica continue desunida, com o embate entre reformados e pentecostais/neopentecostais sendo cada vez mais evidente?

Certamente. As diferenças doutrinárias, de costumes, de organização etc., são elementos que dificultam uma possível aproximação entre as várias vertentes evangélicas brasileiras, notadamente entre históricas e pentecostais em relação as neopentecostais, ou mesmo entre igrejas protestantes históricas e pentecostais. No entanto, observa-se uma contínua aproximação no que se refere aos desafios da pós-modernidade, como as políticas homossexuais que procuram restringir a liberdade de expressão evangélica, com projetos como a PLC 122/2006, além de políticas ligadas à legalização do aborto, da prostituição e do uso de drogas, como a maconha, por exemplo. A tendência é de uma possível articulação religiosa, em um âmbito nacional e interdenominacional, e que envolverá representantes evangélicos e católicos. É o único caminho dado à expansão ideológica e de influência de grupos de defesa do homossexualismo, nos três poderes.

Como seria um país de maioria evangélica, que tivesse também um presidente evangélico? “Do outro lado da moeda”, não haveria o risco de o país perder sua característica laica? Quais seriam os deveres desse presidente, como cristão?

A discussão sobre uma futura hegemonia evangélica no Brasil passa pela questão da manutenção do laicismo, sem dúvida alguma. Diria que, os evangélicos já são maioria no Brasil, em relação ao número de católicos praticantes. É um fato igualmente não perceptível pelo Censo 2010 do IBGE, que apontou algo em torno de 123,5 milhões de pessoas que se declaram católicas. No entanto, dos próprios dados coletados pelo IBGE e pela Fundação Getúlio Vargas, foi detectado e apresentado um dado preocupante  por ocasião da 50º Assembleia Geral da Conferência Nacional de Bispos do Brasil, realizada entre os dias 18 a 26 de abril de 2012. Segundo o padre jesuíta Thierry Lierry de Guertechin, apenas 5%, ou cerca de 7 milhões de brasileiros vão à missa e recebem os sacramentos, de um universo de 123,3 milhões que se declaram “católicos”. Portanto, poderíamos adiantar e dizer que o Brasil não é mais o maior país católico do mundo, pelo menos não em número de praticantes. É uma realidade.

As discussões em torno do presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara dos Deputados, Marco Feliciano, servem de exemplo e termômetro para um futuro questionamento que envolveria, por exemplo, um presidente evangélico. Como se daria, por exemplo, a relação do Governo (no caso, presidido por um evangélico) com os diversos credos religiosos, como o catolicismo (romano e popular), às religiões afro-brasileiras, às de origem norte-americana (como as Testemunhas de Jeová), e às religiões orientais (a exemplo do islamismo e das diversas correntes de origem nipônica), cujo crescimento não deixa margem a dúvidas de que o Brasil será, de fato, dentre alguns anos, composto por uma multiplicidade de credos ou confissões. Alguns movimentos seculares, como de homossexuais e ateus, também têm experimentado um significativo crescimento nos últimos anos, mesmo que em termos ideológicos ou partidários.

Há de se considerar, ainda, o fato de que o Brasil já foi governado por dois presidentes evangélicos, em um período relativamente próximo – há um intervalo de 20 anos entre o término do primeiro e o começo do mandato do segundo e situações políticas semelhantes. Café Filho (1899-1970), foi presidente do Brasil entre 1954-55, no lugar de Getulio Vargas. Membro da Primeira Igreja Presbiteriana de Natal (RN), onde teria sido doutrinado no calvinismo, Café Filho entrou para a História do Brasil como o primeiro presidente protestante (evangélico) do país. Apesar de evangélico, era defensor do direito ao divórcio, pelo o que foi alvo de duras críticas e oposição por parte da Liga Eleitoral Católica. Menos fervoroso que Café Filho, porém com as mesmas crenças fundamentais – com exceção do calvinismo -, Ernesto Beckmann Geisel (1907-1966) era filho de imigrantes alemães, estudou no colégio protestante Martin Luther, e, como os pais, era luterano. Eleito 29º presidente, o luterano descendente de alemães governou o Brasil entre 1974 e 1979, período em que foi sancionada a Lei do Divórcio.

Embora o Brasil tenha sido governado por dois evangélicos, há uma significativa diferença entre as décadas de 50 e 70, com a atual dinâmica religiosa brasileira. Primeiro, as turbulências em torno de Getulio Vargas, o fato de Café Filho ter exercido o cargo de vice-presidente, e ter ocupado a Presidência por não mais que um ano – devido o falecimento de Vargas -, são elementos que o desqualificam. A eleição de Ernesto Geisel, em 1974, à presidente da República, também pode ser alvo de questionamentos, pelo o fato de não ter sido eleito por meio do voto popular, mas por meio de uma eleição indireta – pelo colégio eleitoral. Segundo, o número de evangélicos nos anos 50 e 70 era insuficiente para a eleição de um presidente evangélico. Atualmente, no entanto, devido à diminuição no número de fieis católicos – passou de 70,90% em 1970, para 64,6%, em 2010 – e o crescimento cada vez maior do número de evangélicos – passou de 6,6% em 1970, para 22,2% em 2010 – é um claro indício de que os evangélicos poderão, de fato, alcançar o Poder dentre alguns anos – se cumprida à perspectiva de que, em 2030, representarão 50% da população. Mesmo que eleito um presidente evangélico – o que, em si, não há problema algum -, a laicidade do Estado tem de ser preservada, dado o fato de que o Brasil possui uma grande diversidade religiosa. Portanto, não cabe a um presidente evangélico utilizar o Governo para beneficiar ou promover sua confissão religiosa.

Discussão recente na mídia, em um estado laico, é permitido o uso de símbolos religiosos em repartições públicas, culto nas plenárias etc.? Isso não prejudica a credibilidade de quem deveria cuidar dos interesses de toda a sociedade?

A laicidade pressupõe neutralidade em questões religiosas. Um estado não deve, portanto, permitir que símbolos internacionalmente reconhecidos sejam expostos em repartições públicas, não por uma questão de o Estado ser ateu ou não, mas por uma questão de neutralidade. O uso de espaços públicos para a realização de eventos religiosos não fere a laicidade pelo o fato de que o local é, por definição, público – desde que, convém ressaltar, não exista favorecimento de determinada organização religiosa, em detrimento de outras. No entanto, não cabe ao Estado financiar eventos religiosos, como o verificado em algumas cidades do Brasil, como ocorre em uma cidade do ABC paulista, onde o Executivo, há pelo menos dez anos, financia uma conferência missionária evangélica, com liberação de até R$ 60 mil ao ano. A vinda do Papa Francisco ao Brasil é uma exceção pelo o fato de que a relação é a de Estados, e não, simplesmente, a do Estado brasileiro em relação ao Catolicismo Romano.

O que dizer sobre a tentativa da Igreja Católica de retomar influência em países, como Brasil, onde o número de fiéis é decrescente? Esse projeto terá alguma influência sobre a configuração do mapa das religiões nos próximos anos no país?  

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) passa por uma crise institucional e numérica perceptível por qualquer estudioso da religião. É fato que a ICAR presencia uma queda em sua hegemonia global, como na Europa ocidental, onde o ateísmo, o islamismo e o nominalismo cresce de forma considerável e, na Europa oriental, a Igreja Ortodoxa Russa (IOR) possui milhões de fieis. Há uma tentativa, iniciada com a eleição do primeiro papa não-italiano em pelo menos 460 anos, o polonês Karol Wojtyla, de fortalecimento de suas áreas de influência, a partir de países como o Brasil, o México, os EUA, a Itália, a Polônia e as Filipinas. A escolha de Cracóvia, na Polônia, como a próxima cidade-sede da JMJ segue uma agenda de fortalecimento regional. Com uma população de 38,53 milhões, a Polônia é de especial interesse para o Vaticano pelo o fato de que possui o maior número de católicos por habitantes da região, com algo em torno de 86,7% de fieis. Situação diferente ocorre na Ucrânia, onde há apenas 11,1% de católicos, contra os 54,3% de ortodoxos, e na Romênia, onde o número de católicos não passa de 4,7%.

A chegada da Renovação Católica Carismática (RCC) ao Brasil, no começo da década de 70, o investimento em padres jovens e midiáticos, e a realização da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), no Rio, representam parte do esforço da Igreja no sentido de retomada da dianteira. Foi com a Constituição de 1891 que a Igreja começou a perder parte de sua hegemonia, sendo finalmente ameaçada com o crescimento pentecostal e neopentecostal, a partir da década de 50. Atualmente, os esforços pela manutenção de uma confissão religiosa contextualizada parecem começar a surtir efeito, principalmente em um momento em que o protestantismo demonstra dar sinais de enfraquecimento, com evasão de crentes e um crescente liberalismo teológico. A tendência é, portanto, de que o Catolicismo Romano se fortaleça nos próximos anos, mas com uma característica predominantemente ecumênica e retomada das Comunidades Eclesiais de Base.

Sem dúvida alguma haverá uma mudança no mapa das religiões nos próximos anos, mas não apenas por conta de uma possível retomada da hegemonia católica no país, mas também por um contexto geral, como o crescimento de grupos religiosos de origem norte-americana e nipônicas, por exemplo. O Brasil, assim como os EUA, o Japão e a Rússia, serão os futuros celeiros mundiais de religiões, ao mesmo tempo em que o radicalismo islâmico, o ateísmo, o homossexualismo e a anarquia encontram cada vez mais espaço.